Quando saíam de madrugada para o trabalho, nos séculos 16 e 17, os camponeses da região de Valência, na Espanha, levavam azeite, arroz, sal e uma panela redonda, ampla e rasa, com alças, a que davam o nome de “paella” – e não “paellera”, como dizem alguns atualmente. Ainda de manhã, capturavam um coelho ou pato selvagem, caracóis nativos e colhiam legumes da estação.
Ao meio-dia, reuniam-se em torno do fogo e iniciavam o ritual do almoço. Era um momento de sociabilidade e congratulação. Na “paella”, utensílio derivado de “patella”, a bandeja usada pelos romanos nos rituais de fecundação da terra, colocavam azeite, carnes, vagens, águas, favas, sal, caracóis, açafrão e arroz. Só mais tarde acrescentaram o tomate, ingrediente originário da América, que chegou à Espanha após a viajem pioneira de Cristóvão Colombo, e o frango, nobre a caro demais para os padrões rurais da época.
Essa é a história oficial da “paella”, o prato de origem espanhola mais preparado no mundo. Ao migrar para ouras regiões, a receita valenciana sofreu interessantes aculturações. Surgiram a “paella marinera”, feita com peixes e frutos do mar; a “mista”, à base de peixe, frutos do mar e carnes; a “negra”, com tinta de lula. Além disso, apareceram “paellas” apenas com verdura, alcachofra, fígado ou morcela. Mas existe uma variante da “paella” com massa, a “fideuà”. O nome vem de “fideo”, que em espanhol significa aletria, macarrão. No poro de Gandia, em Valência, conta-se que a “fideuà” surgiu acidentalmente. Os pescadores usaram massa porque não tinha arroz para juntar aos ingredientes.
A “paella” é sobretudo um prato festivo, que os espanhóis saboreiam em batizados, casamentos, feriados religiosos e fins de semana. Como o churrasco brasileiro, sua preparação compete ao homem, geralmente ao chefe da casa. É feita de preferência ao ar livre, em fogo a lenha, longe da cozinha e da conotação feminina que ela possui. Ali, sem perigo de arranhar sua virilidade, o homem elabora um prato complicado e barroco, generoso e rico, recebe elogios e ocasionais aplausos. Apenas aos filhos homens transmite os truques herdados dos ancestrais ou que descobriu na exibição culinária. Com essa conotação machista, a “paella” se espalhou pela Espanha e chegou ao Brasil, no final do século 20. Hoje, muitos homens de todo o Brasil já trocam o churrasco pelo seu preparo.
Antigamente, o fogo era exclusivamente a lenha. O domínio da chama, com seus significados ambivalentes – simboliza purificação e castigo, superioridade e transformação – engrandecia a exibição viril. Localizado junto ao Mediterrâneo, o território de Valência possui raros bosques naturais. A falta de lenha obrigava os camponeses a fazerem fogo com ramos e lascas de arvores frutíferas, sobretudo com laranjeiras, cultivadas há séculos na região. Esse material, de composição ácida, produzia brasas miúdas, uniformes, de calor intenso. Por outro lado, seu perfume agradável impregnava e temperava suavemente a comida. A tecnologia moderna criou o fogo a gás e a “paella” o incorporou. O prato nacional da Espanha perdeu um pouco da magia original, mas continuou a ter importância social. Não nos referimos aqui à “paella” feita no dia-a-dia, no fogão de casa. Tem expressão cultural de natureza diversa.O sucesso da “paella” depende de inúmeros fatores. Usa-se exclusivamente a panela tradicional porque ela possui muita base e pouco fundo. É a única capaz de cozinhar o arroz em extensão e não em altura, como manda a receita.
Sua superfície ampla garante a perfeita evaporação da água. O grão do arroz deve ser médio, com 5,2 a 6 milímetros de comprimento. É o que absorve melhor os sabores do cozimento, sejam carnes, peixes, frutos do mar, verduras ou legumes. Na prática, funciona como uma pequena esponja. O ponto de cozimento também é importante. O arroz precisa ficar inteiro, seco e solto. Se passar, rompe o grão e desperdiça o amido. O sabor diminui e a textura se trona pastosa.
Como o arroz não pode ser mexido durante o cozimento, há quem diga que a parte mais deliciosa fique no fundo e nas laterais. É o “socarrat”, ou seja, os grão que pegam na “paella”, adquirindo cor marrom e queimadinho crocante. A quantidade de azeite deve ser bem dosada, pois a “paella” não pode ser gordurosa. Finalmente, também se dá muita importância ao volume de água. Se excessivo, atrapalha todo o cozimento. Muitos valencianos acreditam que a verdadeira “paella” é feita com água de sua terra natal. Na Espanha, esse zelo regional dá origem a piadas. Mesmo assim, sempre que vão preparar a receita longe da casa, alguns continuam a carregar água valenciana.
É um cardápio completo. O ideal é que os presentes se sirvam à vontade. O clima envolve gula e sociabilidade. No passado, o cerimonial era ainda mais comunitário. O autor dividia a “paella” em partes iguais, desenhando no arroz triângulos exatos, a partir do centro, conforme a quantidade de comensais. Cada um ficava com uma porção e respeitava as que cabiam aos demais.
Evidentemente, a pronuncia mais correta é a espanhola, algo próximo de “paelha”. Um fundamentalista valenciano afirmou que, chamada de “paeja”, a receita perde a autenticidade.
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